
Partidas decisivas - como se comportar?
Foto: Kayssa Alves
Os campeonatos de xadrez, em sua maioria, utilizam o sistema suíço de emparceiramento, ou 'pontos corridos', não tendo nesse caso semifinais e finais. Quem aqui nunca foi questionado ao chegar de um torneio: 'E aí, chegou na final?'. A pergunta é bem lógica, pois a maioria dos esportes funciona no formato eliminatório ou 'mata-mata'.
Para quem não conhece o mundo das competições: o sistema suíço, em linhas gerais, emparceira os jogadores que têm o mesmo número de pontos - por exemplo, quem ganha o primeiro jogo enfrenta outra pessoa que também começou com vitória, e assim por diante, quem conseguir duas vitórias enfrenta alguém com a mesma campanha. Mesmo assim, existem muitas situações decisivas, normalmente na última rodada e que funcionam como se fossem uma 'final', principalmente em campeonatos onde tem algo importante em disputa.
Eu já me encontrei muitas vezes nessa situação, e separei quatro partidas, que foram algumas das mais decisivas da minha carreira até hoje. A grande questão é - como se comportar antes e durante esses momentos de alta tensão?
1. KSM (2467) x MI Everaldo Matsuura (2478) - 76º Campeonato Brasileiro de Xadrez, Americana/SP, 08/12/2009
Eu obtive o título de Mestre Internacional em 2005, e passei perto de conseguir normas de Grande Mestre ao longo dos anos, mas até esse dia eu não tinha conquistado nenhuma ainda. Após 7 rodadas, eu fazia um grande torneio e precisava ganhar de brancas do MI (hoje GM) Everaldo Matsuura. As análises da partida são bem interessantes, mas a situação fora do tabuleiro era mais intrigante - eu estava na minha última semana de provas no último semestre do curso de administração de empresas que eu cursava na Universidade Mackenzie, em São Paulo. Não tinha opção, eu tinha que fazer as provas durante o torneio. Inclusive nesse dia, eu tive a última prova de todo o meu curso, e simbolicamente, poderia ser uma passagem de bastão - conclusão de uma fase e início da outra, com a busca da primeira norma de GM. Deixo com vocês a análise abaixo:
2. GM Diego Flores (ARG, 2598) x KSM (2503) - 7º Campeonato Continental de Xadrez, Mar Del Plata (ARG), 21/10/2012
Essa partida tem um significado muito importante - era a minha primeira chance real de classificar para a Copa do Mundo. Cheguei na última rodada liderando o Campeonato Continental das Américas, junto com o venezuelano Eduardo Iturrizaga, de quem eu tinha perdido na 7ª rodada. Éramos os únicos jogadores com 8 pontos em 10 rodadas e precisávamos do empate para garantir no mínimo a passagem para o desempate das vagas do mundial. Ele enfrentaria de brancas o experiente GM peruano Julio Granda Zuniga na mesa 1, e na mesa 2 eu jogaria de pretas contra o GM argentino Diego Flores. Dessa vez eu não tinha provas da faculdade, mas não conseguia evitar o nervosismo de estar perto de um objetivo tão difícil. No dia anterior eu tinha ganho de brancas do pré-ranqueado 1 do torneio e então número 31 do mundo, o GM cubano Lázaro Bruzon em uma partida tensa. E conseguir aquela vitória tinha me dado tanta satisfação que por um lado era como se eu já tivesse cumprido minha meta na quela viagem. Mas o torneio estava longe de acabar, e aquela última rodada seria a decisão de tudo. O Diego Flores sempre teve um repertório bem flexível e eu passei a noite preparando todas as ordens e ideias possíveis que ele tentaria (sim, foi errado fazer isso e não descansar direito). Até que cheguei para a partida e consegui encaixar uma das ideias que eu tinha preparado, fiquei melhor, confiante e consegui uma boa vantagem no tempo. Mas isso foi só o começo...
Foto: Albert Silver
Anos depois, descobri que um argentino tinha gravado e subido para o YouTube trechos do final de torres (o vídeo começa depois do meu lance 34...f5). A música dramática combina muito com o estado de espírito que fiquei depois da partida, por desperdiçar uma posição boa na abertura, e ter feito um lance difícil de explicar no final de torres, quando eu estava a caminho de salvar a partida.
Expressão nada feliz já com o final perdido Foto: Albert Silver
KSM (2558) x GM Salvador Alonso (2505) - 9º Campeonato Continental de Xadrez, Pipa/RN, 26/10/2014
Dois anos depois, no Continental das Américas da Praia de Pipa, no Rio Grande do Norte, me encontrei em uma situação parecida. Cheguei com 7,5 pontos em 10 rodadas, vindo de duas vitórias importantes, e eu tinha brancas contra o GM argentino Salvador Alonso, só que dessa vez precisando ganhar para chegar ao grupo de 8,5 que iria para o desempate das vagas do mundial. Jogar de brancas é bem mais fácil, e nesse caso eu tinha pela frente um adversário que raramente mudava suas defesas, o que também me rendeu uma preparação longa, mas bem mais direcionada (SIM, ERA MAIS IMPORTANTE DESCANSAR OUTRA VEZ!). Inclusive lembro de ter caído no sono com o chessbase aberto no notebook nesse dia.
Na partida, chegamos em uma posição que eu não esperava que ele jogasse, pois eu considerava inferior para as pretas, o que de fato é verdade. De qualquer maneira, eu tinha revisado um pouco essa variante e me senti confiante depois do lance 21. Consegui uma certa vantagem, e lembro que nessa ocasião eu estava bem menos nervoso que em 2012. Mas outra vez conduzi mal a partida, acabei ficando por baixo, e no fim terminei satisfeito por ter conseguido escapar de um final bem desagradável. Confiram essa análise:
A conclusão dessas duas partidas de Continentais, onde nenhum dos meus adversários vieram muito bem preparados para a partida, é que a tranquilidade e o bom descanso têm sido fatores mais importantes nos momentos decisivos.
KSM (2555) x GM Rafael Leitão (2633) - 82º Campeonato Brasileiro de Xadrez, 13/01/2016
Por fim, outra situação de Campeonatos Brasileiros, mas dessa vez não era por causa de norma. Estávamos na 6ª rodada, eu dividia a liderança do torneio com o MF (hoje MI) Ernani Choma, com 4/5 e eu enfrentaria de brancas o número 1 do torneio e do Brasil, o GM Rafael Leitão. O Rafael é o terceiro adversário que eu mais enfrentei na vida e um jogador que eu conheço bem. Eu sabia que era muito importante conseguir um resultado positivo nessa partida, se eu quisesse tomar a liderança para buscar o meu segundo título brasileiro (fiz um artigo sobre o meu primeiro, em 2013). Me preparei bem contra a siciliana Najdorf dele, sua principal arma contra 1.e4, que foi sua escolha na partida. A abertura foi interessante, deixei escapar algumas boas alternativas e entramos em um final equilibrado. O divisor de águas foi o lance 31, onde escolhi recusar uma repetição de três lances em uma posição nada clara para buscar a vitória de qualquer maneira. Poderia ter dado errado ou dado certo - acabou dando certo!
Após esse resultado positivo, comecei uma corrida rodada a rodada com o MI (hoje GM) Evandro Barbosa, e mesmo com oito vitórias seguidas, cheguei na última rodada com apenas meio ponto de vantagem, que consegui consolidar com uma vitória para terminar com 10/11 e fazer o melhor rating performance da minha vida, com 2728, e conquistar o bicampeonato brasileiro!
Foto: Albert Silver