
Xadrez Forense (Uma Lógica de Outro Mundo!)

Descobrindo o Descoberto
Um Problema Monocromático


- Se a peça era um cavalo preto, então, contando com os dois cavalos pretos que ainda estão no tabuleiro, podemos dizer que as pretas chegaram a ter três cavalos ao mesmo tempo. Um deles só pode ter sido obtido via promoção de peão.
- Se a peça preta que foi capturada em d8 era um bispo, então esse bispo também só pode ter sido obtido via promoção, pois o bispo preto de casas escuras original nunca saiu de f8 e foi capturado lá, como é possível deduzir a partir dos peões pretos em e7 e g7.
- um peão preto (pois só falta um peão preto no tabuleiro, e esse peão foi promovido), nem
- um cavalo preto (pois o terceiro cavalo preto, se houve, já morreu em d8) e nem
- um bispo preto (pois o bispo de f8 nunca saiu da casa inicial e, se houve outro bispo preto de casas escuras, ele morreu em d8).
Também não pode ser uma torre ou uma dama preta, pois, nesse caso, o rei branco estaria em xeque, assim como o rei preto, e os dois reis simultaneamente em xeque é impossível.
Consequentemente, a peça escondida por um ponto de interrogação é branca. Mas, que peça é essa?
Não pode ser um peão, pois o único peão branco que falta foi promovido a torre em d8. Portanto, trata-se de uma dama, torre, bispo ou cavalo. Para decidir entre essas possibilidades, precisamos continuar pensando por mais um pouco nas pretas.
Primeiramente, como já foi demonstrado, um peão preto foi coroado. Que peão foi esse? Olhando para os peões pretos ainda no tabuleiro, vemos que o peão em a6 veio de b7; os peões em c5 e d6 vieram de c7 e d7; e o peão em c4 deve ter vindo de f7. Logo, o peão faltante saiu de h7.
Em seguida, podemos nos perguntar em que casa da primeira fileira esse peão foi coroado. Esse peão precisou ser desviado da coluna h, pois o peão branco em h2 ainda não se mexeu para tê-lo deixado passar. Ou seja, o peão preto que coroou com certeza capturou uma peça branca. E não pode ter capturado mais de uma, pelo seguinte motivo. Há onze peças brancas no tabuleiro, contando com a de h4, que já sabemos ser branca. Portanto, faltam cinco peças brancas. Uma foi capturada pelo peão de a6; outras três foram capturadas pelo peão em c4 (que por sua vez saiu de f7), o que justifica quatro das cinco capturas. Assim, o peão preto que coroou capturou uma peça apenas, mudando-se para a coluna g. A casa de promoção, portanto, foi g1.
Agora, sabemos que o peão de h7 capturou uma peça branca em algum lugar na coluna g, mas em que casa? Parece que a única possibilidade é em g2, atrás do peão branco em g3. Todavia, usando um pouco de cautela, vemos que precisamos descartar a hipótese de o peão branco em g3 ter vindo de f2, deixando a fila g livre para o avanço do peão preto.
Suponhamos que o peão em g3 realmente veio de f2; nesse caso, o peão capturou uma peça. Já o peão branco que foi promovido a torre em d8 teria saído de g2, tendo capturado cinco peças: quatro para ir de g2 a c6 e mais uma para ir de c7 a d8. Até agora, teríamos seis peças pretas capturadas. Olhando para o tabuleiro, vemos que faltam justamente seis peças pretas, de modo que nossa hipótese parece plausível. No entanto, lembrando que o bispo preto de f8 foi capturado em sua casa original, e notando que é impossível ele ter sido capturado em uma das capturadas já contabilizadas, a hipótese cai por terra. Concluímos então que o peão de g3 não pode ter vindo de f2. E o peão preto coroado capturou uma peça em g2, de fato.
E por que isso é relevante para decidir que peça branca se encontra em h4, escondida pelo ponto de interrogação? Pela razão seguinte: g2 é uma casa clara. Portanto, o peão preto coroado capturou uma peça em uma casa clara. E o mesmo ocorre com todos os peões pretos que capturaram peças adversárias. O peão em a6 capturou sua peça em uma casa clara; e o peão em c4 capturou sua três peças em casas claras. Isso significa que todas as cinco peças brancas faltantes foram capturadas em casas claras. Agora, a única peça branca que não pode ser capturada em uma casa clara é o bispo de c1. Se a peça desconhecida em h4 não for o referido bispo, então esse bispo seria uma das cinco peças brancas faltantes, capturada em uma casa clara, o que é absurdo. Logo, a peça em h4 é um bispo branco.
Sobre o Autor do Livro
Raymond Merrill Smullyan (1919-2017) foi um matemático, lógico, filósofo taoista, enxadrista, pianista e ilusionista norte-americano, autor de obras recreativas sobre Lógica e Xadrez (algumas traduzidas para o português) que são verdadeiros tesouros para os apreciadores dessas áreas.
Smullyan contou que ele próprio foi iniciado no mundo da Lógica ainda criança, num dia em que estava com gripe, acamado. De manhã, seu irmão, Émile, entrou em seu quarto e disse: "Ray, hoje ainda vou te enganar como você nunca foi enganado antes", fazendo com que o rapaz ficasse aguardando ansiosamente pelo logro. No entanto, Émile não voltou, a não ser à noite, quando foi cobrado e respondeu:
— Você esperava que eu te enganasse, certo?
— Sim.
— E eu não fiz isso, certo?
— Certo.
— Mas você esperava que eu fizesse, certo?
— Certo.
— Então eu te enganei, não enganei?
Os livros de Smullyan sobre Lógica contém enigmas deliciosamente misteriosos. Os principais temas abordados por ele são a auto-referência e a lógica coercitiva. Auto-referência é quando alguém faz afirmações sobre si mesmo, o que pode causar dificuldades lógicas terríveis; por exemplo: a frase “Esta frase é falsa” é verdadeira ou falsa? Se for verdadeira, então vale o que ela está afirmando, ou seja, ela seria falsa, o que é uma contradição. Por outro lado, se ela for falsa, então automaticamente o que ela está afirmando seria verdadeiro, outra contradição. Portanto, a frase não pode ser verdadeira nem falsa, o que resulta num paradoxo para o qual não existe solução satisfatória.
Já a lógica coercitiva estuda afirmações que obrigam alguém a fazer algo. O exemplo mais clássico consiste na seguinte história: Num certo país, um prisioneiro foi levado diante do rei, que o mandou fazer uma afirmação. Se a afirmação fosse verdadeira, o prisioneiro seria jogado aos leões. Se a afirmação fosse falsa, o prisioneiro seria jogado aos ursos. Mas o astuto prisioneiro encontrou uma maneira de escapar tanto dos leões como dos ursos. Qual foi a frase dita por ele?
Resposta: ele disse “Eu serei jogado aos ursos”. Se esta afirmação for verdadeira, então, de acordo com as regras do rei, o prisioneiro teria de ser jogado aos leões, uma contradição. Por outro lado, se a afirmação for falsa, ainda de acordo com o monarca, o prisioneiro teria de ser jogado aos ursos, mas isso tornaria sua afirmação verdadeira. Logo não existe solução satisfatória, e, para honrar suas palavras, o soberano foi forçado a poupar o prisioneiro.
É importante destacar que os exemplos dados acima são apenas a ponta do iceberg da autoreferência e da lógica coercitiva. Exemplos muito mais interessantes podem ser encontrados nos livros de Smullyan sobre lógica.
Quanto a seus livros sobre xadrez, destaca-se, além do já citado no início deste post, a obra "The Chess Mysteries of The Arabian Knights" — com resenha em breve no blog.