Xadrez Forense (Uma Lógica de Outro Mundo!)

Xadrez Forense (Uma Lógica de Outro Mundo!)

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Você apostaria 1 milhão de reais na seguinte afirmação: "Na partida abaixo, nunca um peão chegou à oitava fileira"?
Caso apostasse, você perderia muito dinheiro, pois a afirmação é logicamente impossível. Motivo: Como o bispo em g3 pode ter saído de sua casa original, em c1, se os peões em b2 e d2 nunca foram movidos para deixá-lo sair? A única possibilidade é que o bispo inicialmente em c1 foi capturado em sua casa original sem nunca ter se movido, enquanto o bispo em g3 é na verdade fruto de um peão branco que chegou à oitava fileira e coroou (lembre-se de que, ao ser promovido, um peão pode ser trocado por dama, torre, bispo ou cavalo; as três últimas trocas são chamadas de subpromoções). Com isso, provamos por a + b que houve uma coroação nessa partida e, para tanto, um peão branco deve ter chegado à oitava fileira em algum momento.
Problemas como esse, de análise retrospectiva, podem ser encontrados no livro "Chess Mysteries of Sherlock Holmes", de Raymond Smullyan. Nessa sensacional obra, o famoso detetive de Baker Street põe em ação suas habilidades analíticas e dedutivas para resolver enigmas intrincados envolvendo o xadrez.
The Chess Mysteries of Sherlock Holmes: 50 Tantalizing Problems of Chess  Detection
Antes de passar para mais uma retroanálise encontrada no livro, uma pergunta natural seria: Por que, na partida acima, as brancas optaram pela subpromoção, em vez de escolherem uma dama? Isso não vem ao caso. O objetivo da análise retrospectiva não é treinar a tática ou a estratégia do xadrez, mas servir como um exercício para o raciocínio lógico-dedutivo em geral.

Descobrindo o Descoberto

Na posição abaixo, as pretas foram as últimas a jogar. Qual foi essa última jogada? E qual foi a última jogada das brancas?
Solução — Note que, antes da última jogada das pretas, o rei preto só podia estar em a7, onde foi colocado em xeque pelo bispo branco. A princípio, poderíamos pensar que o que aconteceu foi o seguinte:
Mas, como o bispo branco chegou em g1 para dar xeque? Parece que a única possibilidade é esse bispo ter acabado de chegar ali vindo de outra casa na diagonal a7-g1. Mas, se foi isso o que aconteceu, então, imediatamente antes de o bispo ser movido para g1, as brancas tinham a vez e o rei preto estava em xeque, o que é impossível, pois sabemos que no xadrez a captura do rei é impossível.
Então, de onde esse bispo acabou de sair para chegar em g1 dando xeque? Na verdade, o último lance das brancas não foi com o bispo, mas com outra peça que foi capturada pelo rei preto e que, portanto, já não se encontra sobre o tabuleiro. Ao ser movida para a8, onde foi capturada, essa peça branca fez com que o bispo branco desse xeque descoberto no rei preto.
Pensando um pouco, vemos que a única possibilidade para essa peça é um cavalo, que estava em b6 e foi movido para a8, como mostrado abaixo.

Um Problema Monocromático

No universo da análise retrospectiva, existe uma classe de partidas de xadrez especialmente interessantes. São as chamadas partidas monocromáticas, onde nenhuma peça é movida de uma casa para outra de cor diferente. Ou seja, as peças que começam em casas escuras (respect. claras) continuam em casas escuras (respect. claras) até o final da partida. São partidas que não fazem sentido "na vida real", mas, para a análise retrospectiva, são um prato cheio.
A posição abaixo aconteceu em uma partida monocromática. Os peões em d2 e f2 são brancos, e há um peão em g3 cuja cor é a incógnita. Esse peão é branco ou preto?
Solução — Detenha-se por alguns instantes na localização do rei branco. Esse rei começou a partida em e1, que é uma casa preta. Os peões em d2 e f2 nunca foram mexidos. Então, como o rei branco saiu de e1 para chegar em b4 sem pisar em nenhuma casa clara do tabuleiro? A única possibilidade é as brancas terem rocado. Foi feito roque grande ou pequeno? No roque grande, a torre sai de a1 (uma casa escura) e vai para d1 (uma casa clara). Portanto, foi feito roque pequeno. Agora, para sair de g1 (onde foi parar após rocar) e chegar em sua casa atual, o rei branco com certeza passou pelas casas h2 e g3. Se o peão em g3 fosse branco, ele só poderia ter vindo de h2, via captura (e não de g2, pois, nesse caso, ele teria saído de uma casa clara para uma escura) e teria sido impossível o rei branco sair. Portanto, o peão misterioso em g3 só pode ser preto.

O Mistério da Peça Faltante (Muito Difícil)

Deixando as partidas monocromáticas um pouco de lado, a seguir é apresentado um problema que leva a retroanálise às últimas consequências.
A posição abaixo aconteceu em uma partida cheia de lances excêntricos, porém todos perfeitamente dentro das regras do xadrez. Existe uma peça em h4 (a casa marcada com um ponto de interrogação). Que peça é essa e qual é a sua cor?
Solução — Quando cheguei a este problema no livro de Smullyan, me dei conta de que a melhor maneira de compreender a resolução é ler uma frase de cada vez e gastar o tempo que for necessário para se convencer a si próprio da veracidade da frase. E, então, seguir a leitura. Cada passo da resolução é como uma peça de um quebra-cabeça. As peças vão se encaixando até que, ao final, o leitor tem o prazer de apreciar todo o quebra-cabeça montado.
Como a torre branca em d7 chegou ali para dar xeque ao rei preto? Não há espaço para ela ter subido ou descido, então a única possibilidade é que havia um peão branco em c7 que capturou uma peça preta em d8, sendo promovido a torre. Ao mesmo tempo em que se promoveu, esse peão descobriu um xeque contra o rei preto.
Que peça preta foi capturada em d8? Não pode ter sido dama ou torre, pois essas peças estariam dando xeque ao rei branco há vários lances, já que é impossível essas peças terem recém chegado à casa d8, devido ao congestionamento do tabuleiro. E, como sabemos, um rei não pode ficar por vários lances em xeque. Portanto, a peça preta em d8 só pode ter sido um cavalo ou um bispo.
  • Se a peça era um cavalo preto, então, contando com os dois cavalos pretos que ainda estão no tabuleiro, podemos dizer que as pretas chegaram a ter três cavalos ao mesmo tempo. Um deles só pode ter sido obtido via promoção de peão.
  • Se a peça preta que foi capturada em d8 era um bispo, então esse bispo também só pode ter sido obtido via promoção, pois o bispo preto de casas escuras original nunca saiu de f8 e foi capturado lá, como é possível deduzir a partir dos peões pretos em e7 e g7.
Em qualquer caso, concluímos que as pretas fizeram uma subpromoção na partida.
Além disso, as pretas estão com sete peões no tabuleiro, portanto elas só fizeram uma promoção. Isso é suficiente para concluir que a peça incógnita (?) não pode ser:
  • um peão preto (pois só falta um peão preto no tabuleiro, e esse peão foi promovido), nem
  • um cavalo preto (pois o terceiro cavalo preto, se houve, já morreu em d8) e nem
  • um bispo preto (pois o bispo de f8 nunca saiu da casa inicial e, se houve outro bispo preto de casas escuras, ele morreu em d8).

Também não pode ser uma torre ou uma dama preta, pois, nesse caso, o rei branco estaria em xeque, assim como o rei preto, e os dois reis simultaneamente em xeque é impossível.

Consequentemente, a peça escondida por um ponto de interrogação é branca. Mas, que peça é essa?

Não pode ser um peão, pois o único peão branco que falta foi promovido a torre em d8. Portanto, trata-se de uma dama, torre, bispo ou cavalo. Para decidir entre essas possibilidades, precisamos continuar pensando por mais um pouco nas pretas.

Primeiramente, como já foi demonstrado, um peão preto foi coroado. Que peão foi esse? Olhando para os peões pretos ainda no tabuleiro, vemos que o peão em a6 veio de b7; os peões em c5 e d6 vieram de c7 e d7; e o peão em c4 deve ter vindo de f7. Logo, o peão faltante saiu de h7.

Em seguida, podemos nos perguntar em que casa da primeira fileira esse peão foi coroado. Esse peão precisou ser desviado da coluna h, pois o peão branco em h2 ainda não se mexeu para tê-lo deixado passar. Ou seja, o peão preto que coroou com certeza capturou uma peça branca. E não pode ter capturado mais de uma, pelo seguinte motivo. Há onze peças brancas no tabuleiro, contando com a de h4, que já sabemos ser branca. Portanto, faltam cinco peças brancas. Uma foi capturada pelo peão de a6; outras três foram capturadas pelo peão em c4 (que por sua vez saiu de f7), o que justifica quatro das cinco capturas. Assim, o peão preto que coroou capturou uma peça apenas, mudando-se para a coluna g. A casa de promoção, portanto, foi g1.

Agora, sabemos que o peão de h7 capturou uma peça branca em algum lugar na coluna g, mas em que casa? Parece que a única possibilidade é em g2, atrás do peão branco em g3. Todavia, usando um pouco de cautela, vemos que precisamos descartar a hipótese de o peão branco em g3 ter vindo de f2, deixando a fila g livre para o avanço do peão preto.

Suponhamos que o peão em g3 realmente veio de f2; nesse caso, o peão capturou uma peça. Já o peão branco que foi promovido a torre em d8 teria saído de g2, tendo capturado cinco peças: quatro para ir de g2 a c6 e mais uma para ir de c7 a d8. Até agora, teríamos seis peças pretas capturadas. Olhando para o tabuleiro, vemos que faltam justamente seis peças pretas, de modo que nossa hipótese parece plausível. No entanto, lembrando que o bispo preto de f8 foi capturado em sua casa original, e notando que é impossível ele ter sido capturado em uma das capturadas já contabilizadas, a hipótese cai por terra. Concluímos então que o peão de g3 não pode ter vindo de f2. E o peão preto coroado capturou uma peça em g2, de fato.

E por que isso é relevante para decidir que peça branca se encontra em h4, escondida pelo ponto de interrogação? Pela razão seguinte: g2 é uma casa clara. Portanto, o peão preto coroado capturou uma peça em uma casa clara. E o mesmo ocorre com todos os peões pretos que capturaram peças adversárias. O peão em a6 capturou sua peça em uma casa clara; e o peão em c4 capturou sua três peças em casas claras. Isso significa que todas as cinco peças brancas faltantes foram capturadas em casas claras. Agora, a única peça branca que não pode ser capturada em uma casa clara é o bispo de c1. Se a peça desconhecida em h4 não for o referido bispo, então esse bispo seria uma das cinco peças brancas faltantes, capturada em uma casa clara, o que é absurdo. Logo, a peça em h4 é um bispo branco.

Mais problemas de análise retrospectiva do livro de Smullyan serão postados no blog em breve.

Sobre o Autor do Livro


Raymond Merrill Smullyan (1919-2017) foi um matemático, lógico, filósofo taoista, enxadrista, pianista e ilusionista norte-americano, autor de obras recreativas sobre Lógica e Xadrez (algumas traduzidas para o português) que são verdadeiros tesouros para os apreciadores dessas áreas.

File:Smullyan-01.png

Smullyan contou que ele próprio foi iniciado no mundo da Lógica ainda criança, num dia em que estava com gripe, acamado. De manhã, seu irmão, Émile, entrou em seu quarto e disse: "Ray, hoje ainda vou te enganar como você nunca foi enganado antes", fazendo com que o rapaz ficasse aguardando ansiosamente pelo logro. No entanto, Émile não voltou, a não ser à noite, quando foi cobrado e respondeu:

— Você esperava que eu te enganasse, certo?

— Sim.

— E eu não fiz isso, certo?

— Certo.

— Mas você esperava que eu fizesse, certo?

— Certo.

— Então eu te enganei, não enganei?

Os livros de Smullyan sobre Lógica contém enigmas deliciosamente misteriosos. Os principais temas abordados por ele são a auto-referência e a lógica coercitiva. Auto-referência é quando alguém faz afirmações sobre si mesmo, o que pode causar dificuldades lógicas terríveis; por exemplo: a frase “Esta frase é falsa” é verdadeira ou falsa? Se for verdadeira, então vale o que ela está afirmando, ou seja, ela seria falsa, o que é uma contradição. Por outro lado, se ela for falsa, então automaticamente o que ela está afirmando seria verdadeiro, outra contradição. Portanto, a frase não pode ser verdadeira nem falsa, o que resulta num paradoxo para o qual não existe solução satisfatória.

Já a lógica coercitiva estuda afirmações que obrigam alguém a fazer algo. O exemplo mais clássico consiste na seguinte história: Num certo país, um prisioneiro foi levado diante do rei, que o mandou fazer uma afirmação. Se a afirmação fosse verdadeira, o prisioneiro seria jogado aos leões. Se a afirmação fosse falsa, o prisioneiro seria jogado aos ursos. Mas o astuto prisioneiro encontrou uma maneira de escapar tanto dos leões como dos ursos. Qual foi a frase dita por ele?

Resposta: ele disse “Eu serei jogado aos ursos”. Se esta afirmação for verdadeira, então, de acordo com as regras do rei, o prisioneiro teria de ser jogado aos leões, uma contradição. Por outro lado, se a afirmação for falsa, ainda de acordo com o monarca, o prisioneiro teria de ser jogado aos ursos, mas isso tornaria sua afirmação verdadeira. Logo não existe solução satisfatória, e, para honrar suas palavras, o soberano foi forçado a poupar o prisioneiro.

É importante destacar que os exemplos dados acima são apenas a ponta do iceberg da autoreferência e da lógica coercitiva. Exemplos muito mais interessantes podem ser encontrados nos livros de Smullyan sobre lógica.

Quanto a seus livros sobre xadrez, destaca-se, além do já citado no início deste post, a obra "The Chess Mysteries of The Arabian Knights" — com resenha em breve no blog.

Bem-vindo ao meu Blog! Aqui, você encontrará principalmente resenhas de livros sobre xadrez.

Eventualmente, alguns posts sobre curiosidades e história do xadrez serão publicados também!

Billy